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PRIMEIRO BALCÃO

Carolina Bettencourt

CARTA A UM ESPECTADOR SINGULAR

Querido espectador,
A ti que te sentas numa sala de espectáculos, que ficas de pé num espaço não convencional, que estás sozinho entre desconhecidos ou que te reconheces como único a assistir. A ti que saíste da tua vida por um momento para ver teatro, a ti, obrigada. É a ti que falo.
Podes ter deixado a vida suspensa e desligado o telemóvel e mesmo que não te saia da cabeça aquele assunto chato de família, o que ainda tens para fazer hoje, a carta de amor que ainda não tiveste coragem de entregar, o cansaço do dia pesado e o vazio de não se passar nada de novo lá fora. Podes ter deixado a vida suspensa, uma ilusão acordada para que alguém te mostre em cena que há janelas novas por onde saltar para se ver o sol nascer, onde esperas que te arranquem aquela gargalhada arrumada na despensa entre as farinhas dos bolos que já não saem dos livros de receitas, onde desejas uma resposta para o teu voto nas próximas eleições ou onde apenas queres um silêncio em apneia nas buzinas dos dias. A ti, espectador, que vieste porque quiseste, porque alguém te empurrou, que até duvidaste, mas cedeste porque te disseram que era preciso ceder às rupturas do conforto instalado. A ti, espectador, que estás por todas as razões, mas que te trazes a ti mesmo.
Quão difícil é trazeres-te a ti mesmo, já pensaste?
À tua frente ninguém te fará perguntas, ninguém te passará uma pomada nos ombros que te doem ao dormir, nem ninguém te vai abraçar o ego, nem te dar parabéns por teres chegado a horas (mesmo com o trânsito que apanhaste, com as duas colheres de sopa que despejaste para o estômago, mesmo com tanto que deixaste fora das portas do tempo deste encontro).
A boa notícia é que ninguém te vai proibir de nada. No teatro é proibido proibir, sabias? Foi um professor que me disse. Mesmo que tenha ouvido na canção do Caetano, guardei a frase nas cábulas da profissão.
Ao teu lado pode estar alguém com um ecrã a iluminar o rosto em acto contínuo (não deixou nada em suspenso), pode estar alguém que se quis arranjar para aqui estar com uma roupa brilhante que distrai, pode estar alguém com uma tosse aflitiva, pode estar alguém a comentar tudinho porque não aguenta a distância de todas as distâncias possíveis, pode estar uma cadeira com tempo a mais e que não aguenta mais pesos sem reforma, pode estar a porta da sala a abrir e a fechar com gente atrasada ou com algum assunto de força maior.
Ao teu lado pode acontecer o mundo ao contrário e no palco não vão distinguir se eras tu ou era o outro.
Sabes porquê? Por mais que haja intenção, ninguém tem tempo para ver além de si, para ver além do grupo.
Tu não sabes nada de quem está à tua frente. Nem os graus de febre cobertos a Ben-u-ron, nem as feridas que fugiram da água oxigenada e de tudo o que arde. Não sabes, porque não tens de saber. É bom que não saibas; já é grande o teu papel.
A ti, querido espectador, gostava de te pedir uma coisa: não sejas mais do que tu mesmo. O que vai acontecer neste tempo suspenso depende de ti. Amanhã de outro. Hoje, agora, de ti.
No palco, podem até achar que têm tudo controlado, que foi tudo ensaiado, que está mais do que rodado. Podem achar, mas não sabem que estás cá tu. Tu é que terminas o que recebes, tu é que acolhes ou não, tu é que ficas com a bola nas mãos até novo videoárbitro. Só vai existir teatro se tu quiseres.
Quando tudo acabar, não vás em cantigas. Não te levantes se não quiseres, não batas palmas se não quiseres e faz tudo isso se assim entenderes, mesmo que mais ninguém o faça. Não olhes para mais ninguém que não conhece o teu papel.
Vou dizer-te duas coisas: os actores não agradecem pelo seu trabalho, agradecem por estares aqui. E há espectadores que aplaudem para outros verem que estiveram lá.
Não é um problema, mas podia mudar. O espectador que tem consciência que tem nas suas mãos o fim do espectáculo e que ainda assim age apenas e somente por si, esse espectador pode mudar o mundo.
No amor e na democracia, na guerra e na paz, na ciência e na filosofia, na arte e no desporto, na vida. Basta uma voz audível para mudar a história.
A história nova do teatro precisa de uma revolução. Uma revolução em ti, querido espectador.
Amanhã estará outro no teu lugar e depois de amanhã estará vazio. As portas fechar-se-ão à mesma hora e tudo vai iludir-se com a repetição. É só suspender a vida e acreditar que hoje é para mudar. A vida quase que se esquece que precisa de ti, mas precisa, porque precisa de liberdade.
Querido espectador, obrigada.

 

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